terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Sedução pelo olhar


Característicos do centro de Fortaleza, os cines pornôs transformaram-se em objeto de estudo, tema de livro e documentário


Mais uma parada de ônibus lotada no Centro da cidade. Ao lado, estabelecimentos modestos anunciam, em folhas de papel pregadas na parede, “sessões” de cinema por cerca de três reais. Na bilheteria, não encontramos a figura do famoso pipoqueiro, mas os cartazes explícitos dos filmes em exibição dão as boas vindas aos frequentadores. O forte cheiro, vindo das salas escuras, é um convidativo para os mais ousados ou um fator de repugnância para os considerados mais recatados. 

Foi ao entrar em contato com este universo que Alexandre Câmara Vale, sociólogo e professor, encontrou no cine pornô um forte e rico objeto de estudo. Essa escolha refletiu no surgimento de um novo campo de pesquisa e transformou-se na sua principal luta política.

Recém-graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Ceará (UFC), o então mestrando Alexandre Câmara iniciou suas pesquisas sobre aquele que seria seu tema de dissertação: a identidade masculina e a violência, tendo como espaço de referência a Delegacia da Mulher, na época, recém-criada.



Porém, um convite inesperado e ocasional mudou o rumo profissional e pessoal de Alexandre. Uma amiga da classe média de Fortaleza o levou para conhecer um cine pornô. Embora muito permissiva, lembra o pesquisador, ela demonstrava traços de conservadorismo ao tentar esquivar-se dos olhares de sua manicure que alegremente se exibia ao lado da tela do cinema. “Naquele dia, eu decidi que iria fazer a minha pesquisa naquele local. Ia continuar trabalhando a identidade masculina, só que agora voltado para a pornografia”, relembra saudoso Alexandre Câmara, esboçando um sorriso tímido entre uma prosa e outra.

(Foto: Carolina Areal)


Com um questionamento em mãos e mil possibilidades na cabeça, era preciso agora destrinchar esse objeto e ter acesso ao universo singular dos cinemas eróticos. E foi na figura das travestis, que transitavam livremente pelas salas escuras, que o pesquisador se apoiou. “Elas atuaram como minhas interlocutoras na pesquisa. Foi onde eu encontrei um espaço de fala dentro do cinema. Com elas não havia problemas de visualidade, muito menos o medo de serem descobertas. Era tudo mais livre”, conta.

Tendo como plano de fundo o cenário do Cine Jangada, localizado no Centro de Fortaleza, Alexandre Câmara começou a perceber que o cinema ia além de um mero lugar de encontros e funcionava também como um espaço lúdico para as travestis. Sempre marcadas pela forte repressão da sociedade, elas passaram a enxergar o cine pornô como esse ambiente propício para a visualidade e liberdade sexual.“Nós estamos tão acostumados a pensar na obsessão do sexo que perdemos de vista instâncias da vida que estão presentes nesses locais e que normalmente o mundo social enxerga essa experiência de forma estereotipada”, afirma Alexandre.

A construção de modelos na qual Alexandre Câmara se refere aborda a condição que, durante anos, o sexo foi adotado na sociedade. Registradas inicialmente como de ordem exclusivamente reprodutora, as experiências sexuais acumularam camadas de significações na sociedade moderna. Do pecado e da culpa, passaram a ser referenciadas como patológicas, além de hoje serem classificadas por muitos como um produto mercadológico.

Considerando o cine pornô um ambiente como outro qualquer, Alexandre Câmara não titubeia ao declarar que é preciso tirar a experiência dos cinemas eróticos desse registro do fantástico e da hetoronormatividade.  “É preciso pensar que todos que estão lá (cines pornô) buscam encontros, que desses encontros podem surgir afetos e até a construção de relações e laços afetivos”, comenta o pesquisador que acredita ainda que em um tempo de mundo individualista, o sexo torna-se uma via de exercício dessa busca pelo sentir e pela afetividade.

O estudo vira arte

Pensar a sala de cinema como a cor de um erotismo difusa e anônima e, ao mesmo tempo, mostrar como esse espaço sempre foi abordado como lugar de erotismo e sedução, foi a grande conquista de Alexandre Câmara ao publicar o livro “No escurinho do cinema – cenas de um público implícito”. Fruto das suas pesquisas de mestrado, o trabalho reúne todos esses mitos e verdades do cine pornô, sob a percepção de um olhar científico, porém extremamente sensível e delicado do pesquisador.

Pioneiro em Fortaleza, Alexandre Câmara teve este trabalho reconhecido como uma das cinco primeiras etnografias sobre práticas sexuais do Brasil. Com o livro, surgiu a oportunidade de também registrar toda essa aprendizagem em um documentário intitulado “Cinema Cara Dura”, dirigido conjuntamente com Simone Lima.

(Foto: Carolina Areal)
Das muitas coisas que viu e sentiu ao longo da sua ousada trajetória acadêmica, Alexandre Câmara carrega consigo a vontade de mudar e desmistificar os (pre)conceitos ainda presentes e impostos na sociedade. “Hoje, luto pela visibilidade, por um Estado laico, por uma experiência na educação e por uma sociedade menos transfóbica ou homofóbica. Essas são lutas que valem a pena, das quais eu acredito e que são importantes para manter vivas possibilidades libertárias na sociedade”, desabafa.

Por Carolina Areal

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