sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Escrever é dedicar


   
    Dedicatórias encontradas em livros revelam afetos gravados, em palavras, que se escrevem na história de outras histórias

    Ao lado da cama, um criado mudo “azul da cor do Frevo”, como ele mesmo gosta de definir- ou seria adivinhar? Sobre o móvel, um copo d’água e dois livros empilhados - Vermelho Amargo, de Bartolomeu Campos de Queirós, e Copacabana Dreams, da filha de terras cearenses Natércia Pontes. Os olhos se perdem, entretanto, nas palavras estampadas na capa de um jornal dobrado cuidadosamente: “Escrever é dedicar”. Contemplativo, o estudante Sávio Alencar, 20, se indaga: “De todas as escrituras, não é a dedicatória o seu tipo mais sublime?”

Dedicatória de Sávio à Jamille. O livro, "Solte os Cachorros", é obra
da autora mineira Adélia Prado. Foto: Arquivo
    Os livros se espalham pelo quarto de Sávio, repousando como em um oásis em meio ao caos do atribulado cotidiano do estudante do curso de Letras da Universidade Estadual do Ceará (Uece). Mais do que um leitor ávido, o jovem é um colecionador de histórias e encanta-se com as palavras rabiscadas na primeira página de uma obra. “A dedicatória passa direto pela memória, pelo coração, pelo peito, pela mão. Dedicatória é coisa de permanência, de pacto selado. Escrevo-te: então tu não deixas de existir. Então, dedico, dedicamos para assegurar a presença do outro em nós, mesmo que, nos próximos capítulos do tempo, os desentendimentos se avizinhem e ela ou ele joguem o livro ou superem a página que juntos pretendíamos viver”, teoriza.

    Na estante, Sávio guarda uma de suas dedicatórias preferidas, a de Sandra para Gabi. Quem são elas? Quem o sabe? O livro - Benjamim, romance do compositor Chico Buarque - foi comprado em um sebo há um tempo não precisado. Na página inicial, Sandra recomenda:  “Certamente esse livro será apenas mais um dos tantos que você lerá. Espero que você goste desta enigmática história, deste homem/tronco Benjamim. Alimente bem a alma”. A obra do cantor carioca é aclamada pela crítica, mas uma questão parece ser muito mais importante do que o enredo da trama: por que o presente para Gabi estava ali, esperando ser comprado por outra pessoa? Uma dedicatória carrega sempre uma história de uma outra história.

O livro é seu, eu te dedico

    Escrevemos, desde os tempos mais remotos da civilização, porque o esquecimento existe. O homem, em sua ânsia por afirmar sua permanência nos espaços, registra em palavras seus momentos felizes, tristes, surpreendentes, banais... Pouco importa. Desejamos mesmo é deixar marcas.

    A dedicatória nada mais é, portanto, do que uma tatuagem na pele de um livro, uma lembrança de um átimo de contentamento. ”Dedicamos porque a felicidade existiu. E existe porque é partilhada com o destinatário da nossa dedicatória. Dedicatórias são, sobretudo, as vozes dos livros”, afirma Sávio.

    Para o revisor Thiago Fonseca, 25, uma dedicatória é uma forma de estabelecer um diálogo. “Quando ganho um livro dedicado de alguém, sinto que estou conversando com a pessoa sempre que o leio. A dedicatória é uma forma de anunciar e iniciar essa conversa. E é também um aviso: ‘Comprei-te este livro por isso, logo, não poderia ser outro. Leia-o, pois, rabiscado, já não poderá trocá-lo. É seu.’ Talvez por isso eu também não goste de comprar livros dedicados nos sebos, pois é como se estivesse bisbilhotando conversa alheia”, conta.

    Encantado pela arte de doar-se ao outro em palavras, Thiago afirma que considera o processo de escrever uma dedicatória semelhante ao de um poema. “As dedicatórias têm esse poder misterioso”, afirma. “Elas podem até ser melhor que o livro, por mais que dependam dele para existir.”

Inventário virtual

    Na escrivaninha do quarto de Sávio, o livro Um Copo de Cólera, obra do escritor paulista Raduan Nassar, carrega uma dedicatória escrita em uma caligrafia arredondada que revela um segredo compartilhado por dois amigos. “Que este livro te sirva, nas horas fúteis, como deleite e lembrança daquela que possui um 'copo de cólera' por esse livro. Camila Oliveira,01/13”. Entre risos, Sávio conta: “Amo esse livro. Camila odeia. Nem sempre as dedicatórias são movidas por humores iguais.”

    A cerca de 2.500 km de distância do estudante cearense, a designer mineira Mariana Guglielmelli (33) é uma Forrest Gump da era virtual. A internauta também é uma contadora de histórias, mas, ao contrário do personagem interpretado por Tom Hanks, ela revive os causos dos outros.

    Mariana é responsável pelo Tumblr “Eu te Dedico (eutededico.tumblr.com), que coleciona imagens de dedicatórias. Iniciado em fevereiro de 2012, o projeto já recebeu cerca de 400 contribuições de internautas desde então.

    “Um livro com dedicatória é um livro com duas histórias, uma que começa no primeiro capítulo e uma que começou antes de se passarem as páginas”, conclui Mariana.

    Assim como uma dedicatória, esta matéria é uma história escrita a quatro mãos. Eu te dedico, Sávio Alencar.


 Bruna Luyza Forte

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

No escurinho do cinema



Valmir Timóteo faz dos cines pornô que frequenta parte da sua história, uma espécie de “segunda casa”, como ele mesmo intitula. De lá saem histórias, experiências e até amores 



“Amor é literatura. Sexo é cinema”, assim disse Arnaldo Jabor, assim parafraseou Rita Lee, quando canta “Amor é novela/ Sexo é cinema”. Então, se sexo é a sétima arte, não é difícil encontrar apreciadores. As películas com conteúdo erótico também atraem simpatizantes. Na Fortaleza do clássico Cine São Luiz, há espaço, também, para os cines pornô, que convidam o púbico a um entretenimento diferente. E é neste ambiente, onde vergonha e curiosidade coexistem, que Valmir Timóteo, 34, surge como frequentador assíduo. Ele tenta passar despercebido, caminhando rápido, rumo a um cine erótico qualquer da Rua Assunção. Mas como ser apenas mais um transeunte? Impossível para quem frequenta esse lugar há doze anos e tem muita história para contar. 

Valmir Timóteo frequenta cines  pornô há 12 anos
Foto: Diego Sombra



Em uma conversa que não durou mais do que cinco minutos, o assunto é tratado com uma naturalidade incomum para um mundo habitado por tabus. “Eu não tenho nenhum problema em dizer que venho aqui. Não me envergonho. Acho que por isso nunca sofri nenhum tipo de preconceito. Muito pelo contrário. As pessoas até se divertem por conta do que eu faço, é daí que nasce a curiosidade em conhecer o local”.

Aos olhos de Valmir, os cines pornô são um local de socialização. É lá que ele conhece pessoas interessantes, enquanto “curte” os filmes. Já tentou ainda mostrar aos colegas mais recatados as vantagens desse entretenimento. “Eu até já trouxe alguns amigos meus que nunca tinham frequentado, para conhecer, mas eles se assustaram com a situação”. No entanto, os cines não participam da história de Valmir apenas como forma de diversão. Entre uma sessão e outra ele conheceu um namorado. A união durou quatro anos. 

O frequentador assíduo considera os cinemas da Rua Assunção sua segunda casa.  Como inquilino que se preze, ele tem críticas à infraestrutura e ao serviço do local. Para Valmir, o que mais incomoda é a falta de higiene das salas.  “No decorrer desse tempo em que eu frequento a estrutura continua a mesma. O jeito é tenta driblar as situações onde encontro desconforto”.  

Adicionar legenda


A falta de segurança é outro ponto negativo. Segundo Valmir Timóteo, muitos profissionais do sexo usam os cines pornôs como local de trabalho. No entanto, outros aproveitam as sessões dos filmes para praticarem delitos, o que mancha a imagem dos cines pornô, que já sofrem com o estigma de um lugar de perversão. “Eles tentam roubar. Já aconteceram vários furtos nos cinemas aqui da Rua Assunção. Inclusive eu já fui vítima desses crimes”, conta ele. 


 Rua Assunção

Localizada no Centro da Cidade, a rua é conhecida por reunir vários cines pornô. 



Por  Isabele Câmara

Sedução pelo olhar


Característicos do centro de Fortaleza, os cines pornôs transformaram-se em objeto de estudo, tema de livro e documentário


Mais uma parada de ônibus lotada no Centro da cidade. Ao lado, estabelecimentos modestos anunciam, em folhas de papel pregadas na parede, “sessões” de cinema por cerca de três reais. Na bilheteria, não encontramos a figura do famoso pipoqueiro, mas os cartazes explícitos dos filmes em exibição dão as boas vindas aos frequentadores. O forte cheiro, vindo das salas escuras, é um convidativo para os mais ousados ou um fator de repugnância para os considerados mais recatados. 

Foi ao entrar em contato com este universo que Alexandre Câmara Vale, sociólogo e professor, encontrou no cine pornô um forte e rico objeto de estudo. Essa escolha refletiu no surgimento de um novo campo de pesquisa e transformou-se na sua principal luta política.

Recém-graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Ceará (UFC), o então mestrando Alexandre Câmara iniciou suas pesquisas sobre aquele que seria seu tema de dissertação: a identidade masculina e a violência, tendo como espaço de referência a Delegacia da Mulher, na época, recém-criada.



Porém, um convite inesperado e ocasional mudou o rumo profissional e pessoal de Alexandre. Uma amiga da classe média de Fortaleza o levou para conhecer um cine pornô. Embora muito permissiva, lembra o pesquisador, ela demonstrava traços de conservadorismo ao tentar esquivar-se dos olhares de sua manicure que alegremente se exibia ao lado da tela do cinema. “Naquele dia, eu decidi que iria fazer a minha pesquisa naquele local. Ia continuar trabalhando a identidade masculina, só que agora voltado para a pornografia”, relembra saudoso Alexandre Câmara, esboçando um sorriso tímido entre uma prosa e outra.

(Foto: Carolina Areal)


Com um questionamento em mãos e mil possibilidades na cabeça, era preciso agora destrinchar esse objeto e ter acesso ao universo singular dos cinemas eróticos. E foi na figura das travestis, que transitavam livremente pelas salas escuras, que o pesquisador se apoiou. “Elas atuaram como minhas interlocutoras na pesquisa. Foi onde eu encontrei um espaço de fala dentro do cinema. Com elas não havia problemas de visualidade, muito menos o medo de serem descobertas. Era tudo mais livre”, conta.

Tendo como plano de fundo o cenário do Cine Jangada, localizado no Centro de Fortaleza, Alexandre Câmara começou a perceber que o cinema ia além de um mero lugar de encontros e funcionava também como um espaço lúdico para as travestis. Sempre marcadas pela forte repressão da sociedade, elas passaram a enxergar o cine pornô como esse ambiente propício para a visualidade e liberdade sexual.“Nós estamos tão acostumados a pensar na obsessão do sexo que perdemos de vista instâncias da vida que estão presentes nesses locais e que normalmente o mundo social enxerga essa experiência de forma estereotipada”, afirma Alexandre.

A construção de modelos na qual Alexandre Câmara se refere aborda a condição que, durante anos, o sexo foi adotado na sociedade. Registradas inicialmente como de ordem exclusivamente reprodutora, as experiências sexuais acumularam camadas de significações na sociedade moderna. Do pecado e da culpa, passaram a ser referenciadas como patológicas, além de hoje serem classificadas por muitos como um produto mercadológico.

Considerando o cine pornô um ambiente como outro qualquer, Alexandre Câmara não titubeia ao declarar que é preciso tirar a experiência dos cinemas eróticos desse registro do fantástico e da hetoronormatividade.  “É preciso pensar que todos que estão lá (cines pornô) buscam encontros, que desses encontros podem surgir afetos e até a construção de relações e laços afetivos”, comenta o pesquisador que acredita ainda que em um tempo de mundo individualista, o sexo torna-se uma via de exercício dessa busca pelo sentir e pela afetividade.

O estudo vira arte

Pensar a sala de cinema como a cor de um erotismo difusa e anônima e, ao mesmo tempo, mostrar como esse espaço sempre foi abordado como lugar de erotismo e sedução, foi a grande conquista de Alexandre Câmara ao publicar o livro “No escurinho do cinema – cenas de um público implícito”. Fruto das suas pesquisas de mestrado, o trabalho reúne todos esses mitos e verdades do cine pornô, sob a percepção de um olhar científico, porém extremamente sensível e delicado do pesquisador.

Pioneiro em Fortaleza, Alexandre Câmara teve este trabalho reconhecido como uma das cinco primeiras etnografias sobre práticas sexuais do Brasil. Com o livro, surgiu a oportunidade de também registrar toda essa aprendizagem em um documentário intitulado “Cinema Cara Dura”, dirigido conjuntamente com Simone Lima.

(Foto: Carolina Areal)
Das muitas coisas que viu e sentiu ao longo da sua ousada trajetória acadêmica, Alexandre Câmara carrega consigo a vontade de mudar e desmistificar os (pre)conceitos ainda presentes e impostos na sociedade. “Hoje, luto pela visibilidade, por um Estado laico, por uma experiência na educação e por uma sociedade menos transfóbica ou homofóbica. Essas são lutas que valem a pena, das quais eu acredito e que são importantes para manter vivas possibilidades libertárias na sociedade”, desabafa.

Por Carolina Areal