Dedicatórias encontradas em livros revelam afetos gravados, em palavras, que se escrevem na história de outras histórias
Ao lado da cama, um criado mudo “azul da cor do Frevo”, como ele mesmo gosta de definir- ou seria adivinhar? Sobre o móvel, um copo d’água e dois livros empilhados - Vermelho Amargo, de Bartolomeu Campos de Queirós, e Copacabana Dreams, da filha de terras cearenses Natércia Pontes. Os olhos se perdem, entretanto, nas palavras estampadas na capa de um jornal dobrado cuidadosamente: “Escrever é dedicar”. Contemplativo, o estudante Sávio Alencar, 20, se indaga: “De todas as escrituras, não é a dedicatória o seu tipo mais sublime?”
Dedicatória de Sávio à Jamille. O livro, "Solte os Cachorros", é obra da autora mineira Adélia Prado. Foto: Arquivo |
Na estante, Sávio guarda uma de suas dedicatórias preferidas, a de Sandra para Gabi. Quem são elas? Quem o sabe? O livro - Benjamim, romance do compositor Chico Buarque - foi comprado em um sebo há um tempo não precisado. Na página inicial, Sandra recomenda: “Certamente esse livro será apenas mais um dos tantos que você lerá. Espero que você goste desta enigmática história, deste homem/tronco Benjamim. Alimente bem a alma”. A obra do cantor carioca é aclamada pela crítica, mas uma questão parece ser muito mais importante do que o enredo da trama: por que o presente para Gabi estava ali, esperando ser comprado por outra pessoa? Uma dedicatória carrega sempre uma história de uma outra história.
O livro é seu, eu te dedico
Escrevemos, desde os tempos mais remotos da civilização, porque o esquecimento existe. O homem, em sua ânsia por afirmar sua permanência nos espaços, registra em palavras seus momentos felizes, tristes, surpreendentes, banais... Pouco importa. Desejamos mesmo é deixar marcas.
A dedicatória nada mais é, portanto, do que uma tatuagem na pele de um livro, uma lembrança de um átimo de contentamento. ”Dedicamos porque a felicidade existiu. E existe porque é partilhada com o destinatário da nossa dedicatória. Dedicatórias são, sobretudo, as vozes dos livros”, afirma Sávio.
Para o revisor Thiago Fonseca, 25, uma dedicatória é uma forma de estabelecer um diálogo. “Quando ganho um livro dedicado de alguém, sinto que estou conversando com a pessoa sempre que o leio. A dedicatória é uma forma de anunciar e iniciar essa conversa. E é também um aviso: ‘Comprei-te este livro por isso, logo, não poderia ser outro. Leia-o, pois, rabiscado, já não poderá trocá-lo. É seu.’ Talvez por isso eu também não goste de comprar livros dedicados nos sebos, pois é como se estivesse bisbilhotando conversa alheia”, conta.
Encantado pela arte de doar-se ao outro em palavras, Thiago afirma que considera o processo de escrever uma dedicatória semelhante ao de um poema. “As dedicatórias têm esse poder misterioso”, afirma. “Elas podem até ser melhor que o livro, por mais que dependam dele para existir.”
Inventário virtual
Na escrivaninha do quarto de Sávio, o livro Um Copo de Cólera, obra do escritor paulista Raduan Nassar, carrega uma dedicatória escrita em uma caligrafia arredondada que revela um segredo compartilhado por dois amigos. “Que este livro te sirva, nas horas fúteis, como deleite e lembrança daquela que possui um 'copo de cólera' por esse livro. Camila Oliveira,01/13”. Entre risos, Sávio conta: “Amo esse livro. Camila odeia. Nem sempre as dedicatórias são movidas por humores iguais.”
A cerca de 2.500 km de distância do estudante cearense, a designer mineira Mariana Guglielmelli (33) é uma Forrest Gump da era virtual. A internauta também é uma contadora de histórias, mas, ao contrário do personagem interpretado por Tom Hanks, ela revive os causos dos outros.
Mariana é responsável pelo Tumblr “Eu te Dedico (eutededico.tumblr.com), que coleciona imagens de dedicatórias. Iniciado em fevereiro de 2012, o projeto já recebeu cerca de 400 contribuições de internautas desde então.
“Um livro com dedicatória é um livro com duas histórias, uma que começa no primeiro capítulo e uma que começou antes de se passarem as páginas”, conclui Mariana.
Assim como uma dedicatória, esta matéria é uma história escrita a quatro mãos. Eu te dedico, Sávio Alencar.
Bruna Luyza Forte
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